6.24.2006

Centro e Periferia , (Nague e Uke) e o ego.

No Aikidô, arte marcial fundada por Morihei Ueshiba, é necessário, no mínimo, dois praticantes.

A grosso modo:

O Uke faz o papel de atacante e é aquele que recebe a técnica.
O Nague desempenha o papel de defensor e é aquele que aplica a técnica no Uke.

Por isso, desde o princípio o iniciante em Aikidô deve treinar Ukemis (técnicas de queda), de modo que possa desempenhar o papel de Uke de maneira adequada e segura. Nas instruções ao iniciante juntamente com o Ukemi são enfatizados:

Taisabaki - Movimentação. Técnicas de deslocamento, "esquivas" e movimentos tanto em pé quanto em seiza (ajoelhado).
Reigi - Etiqueta, reverência e respeito.

Não vou me aprofundar no tema do iniciante ainda. Gostaria de discorrer um pouco a respeito de alguns "insights" que tive recentemente sobre o Uke e o Nague.

No Uke, inicia-se primeiramente o ataque (a princípio segurando um ou os dois braços do Nague, por motivos didáticos, depois evoluindo para socos, chutes, etc) representando a "desarmonia", o que faz com que o atacante não esteja de acordo com os desígnios divinos, cheio de ego e vontade de vencer.
Já o Nague recebe o ataque sem confronto direto, através de uma esquiva ou "cedendo" ao ataque de forma que possa tomar o controle dos movimentos do Uke através de "Aiki" (técnicas nas quais o Nague toma o controle do próprio ataque, força e corpo do Uke). Nesse momento ele se torna o centro da técnica e dos movimentos podendo escolher o destino do Uke que pode ser arremessado, ter um membro quebrado, receber um golpe traumático ou ainda ser imobilizado com pouco ou nenhum esforço.

Quando o Nague começa a aplicar a técnica o Uke tem por obrigação oferecer resistência para que o Nague possa se aperfeiçoar e detectar eventuais falhas. No entanto, a partir de determinado ponto, a técnica "entra", como costumamos dizer no treino. A partir daquele ponto, oferecer resistência só irá causar mais dor ao Uke, tornar o movimento todo "quebrado", sem fluidez, o que pode provocar uma lesão. É extremamente comum os iniciantes se machucarem por ainda não terem encontrado o ponto de "entrada" ou por oferecerem resitência além do devido por quererem vencer ou testar o aluno mais experiente ou o Sensei.

E é nesse "sentimento" que tenho pensado.

Durante a vida, tomamos rumos que não deveríamos, fazemos coisas erradas e, conseqüentemente, entramos em desarmonia com a vontade divina. Essa por sua vez, como um Nague, nos aplica a técnica necessária para que retornemos à harmonia. Nesse processo, às vezes resistimos fazendo com que o sofrimento prolongue-se e, desse modo, o "movimento" não chega a uma conclusão.
Assim como no Aikido, quando nossa vida chega a esse ponto, não notamos que resistir é inútil, que estamos na periferia do movimento como o perímetro de uma roda girando em alta velocidade. Falta aceitação. Não querendo ser "vencidos", cheios de ego, queremos ser os senhores de nosso destino apenas desejando obter prazer e fugir da dor, como epicuristas imbecis, nos nivelando em discernimento a cães. É inútil desejar que nossa vida transcorra sempre como desejamos. É como desejar que o sol não nasça. Determinadas coisas estão dentro do nosso círculo de poder, outras não.

Também existe "Henka Waza" (virar, ou inverter a técnica), que são técnicas avançadas e geralmente só treinadas por faixas pretas em diante. A razão para a exigência da faixa preta antes de se treinar esse tipo de técnica é que o aikidoka tem de ser tanto um bom uke quando um bom nague para poder aplicá-la.

Após o ponto de "entrada", a melhor maneira do Uke se proteger é relaxar, "entregar-se". Acompanhar o movimento procurando se adaptar ao máximo à técnica do Nague. Dessa forma ele consegue fazer as quedas de maneira adequada evitando contusões, quebramentos e golpes traumáticos. Quando nesse estado de aceitação, que ao mesmo tempo é um estado de alerta e percepção ampliada em níveis mais altos, o Uke consegue perceber mesmo após o ponto de "entrada", caso o nague perca o domínio do movimento. Então usa do seu "Aiki" para inverter a posição e aplicar a técnica. Dessa forma o Uke torna-se Nague, passando da periferia do movimento ao centro e tomando o controle.

Quando isso é compreendido, fica mais fácil não só praticar Aikidô. É mais fácil viver.